Com o foco em trazer questionamentos sobre a verdade e a recepção de uma mentira, o primeiro longa-metragem produzido pela Faces Filmes, em Primavera do Leste e Poxoréu (231 km e 251 km de Cuiabá) tem previsão de lançamento entre o fim de 2025 e início de 2026. “Ensaio Sobre a Verdade” apresenta um drama psicológico que teve 24 dias de produção, com uma equipe formada majoritariamente por mulheres.
A Faces Filmes surgiu como uma extensão do Teatro Faces, iniciativa de produção teatral em Primavera do Leste, idealizada por Wanderson Lana, diretor do longa. Nascido em Poxoréu, Lana descobriu logo cedo seu amor pelo cinema e hoje trabalha com o intuito de valorizar e desenvolver o cenário cultural onde vive.
Com uma coleção de cerca de 1,4 mil em DVDs, o diretor relatou ao sua paixão pela sétima arte e como ele trabalhou na fundação do grupo de teatro e, posteriormente, de cinema. Além disso, o cineasta detalhou as dificuldades da cena audiovisual no estado.
Gazeta Digital: Como surgiu sua relação de paixão com o cinema?
Wanderson Lana: O cinema foi minha primeira paixão. O que me despertou bastante para ele é que, mesmo muito jovem, eu queria trabalhar assuntos mais sérios, porque eu não tive uma infância muito tranquila, principalmente por conta do bullying. Então eu senti que faltavam alguns trabalhos um pouco mais profundos.
Eu assisti ao filme Meu Primeiro Amor, que trabalhou a morte na infância e isso me abriu bastante os olhos para o cinema. De repente eu comecei a procurar filmes que não eram só de Hollywood e a estudar cinema. A partir disso, eu fiz cursos de roteiro e de direção.
Então, minha paixão pelo cinema nasce primeiro dos filmes que eu via na televisão e depois, com a internet, pude ter acesso a filmes que não passam no setor comercial. Hoje eu sou ator, dramaturgo, escritor, tenho dois livros publicados e cerca de 30 peças de teatro escritas. Gostar de cinema surgiu antes da minha paixão pelo teatro.
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À esquerda, com camisa longa, Wanderson Lana
Gazeta Digital: Em 2005 você iniciou a criação do Teatro Faces em Primavera do Leste e alguns anos depois surgiu a Faces Filmes. Qual foi sua principal motivação e qual a relação entre os dois?
Wanderson Lana: Tudo começa com o Teatro Faces. Primavera é uma cidade muito jovem e, quando eu cheguei aqui, para você fazer ou assistir teatro tinha que montar um grupo, porque tinha isso. Várias pessoas já tinham tentado o movimento antes de mim e eles não se estabeleceram, então veio a idealização do Teatro Faces.
Foi uma fundação coletiva. Eu e alguns amigos nos juntamos e depois disso cada pessoa trazia o seu olhar para alguma coisa. A gente entendeu que era necessário continuar, então, abrimos uma escola de teatro e algum tempo depois que a gente começou a fazer trabalho de audiovisual, mais ou menos a partir de 2012.
Em 2015, apresentamos um projeto de formação em audiovisual, chamado "Cinema no Mato", onde a gente formou várias pessoas em áreas bem diversas, por exemplo, de roteiro, direção de fotografia, produção, som e começamos também a vencer editais de fomento do Estado. A partir daí surge a necessidade de um selo, porque a gente também inventou no cinema que a gente queria aqui na nossa cidade.
Queríamos um cinema que tivesse conectado ao nosso território, com o nosso jeito de fazer teatro também, que é algo mais colaborativo. Então, pensando nessa ideia de cinema, a gente fundou a Faces Filmes, dentro desse núcleo enorme que é a escola de teatro.
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Gazeta Digital: Hoje, após produções de curtas-metragens e do primeiro longa, de onde vem o financiamento para a continuidade das produções artísticas?
Wanderson Lana: A gente teve vários mecanismos de fomento, sendo o principal através da Lei Aldir Blanc e, mais recentemente, do Lei Paulo Gustavo. São leis incríveis que vislumbram a descentralização do recurso, ou seja, envia um recurso para o Estado e 60% dele deve ser investido em cidades do interior.
Isso nos fortalece bastante, porque as pessoas do capital continuam recebendo recursos, mas isso garante que as pessoas do interior também acessem e consigam fazer seus trabalhos. A gente já tem cenas de cinema muito legais no nosso estado, em Alta Floresta, em Barra do Garças, em Sorriso, em Rondonópolis e em Poxoréu e em Primavera do Leste.
Gazeta Digital: O primeiro longa produzido pela Faces Filmes, "Ensaio Sobre a Verdade", teve uma etapa de filmagens finalizada recentemente. Ele era inicialmente uma peça de teatro. Qual foi o seu processo de inspiração e criação até o texto se transformar em filme?
Wanderson Lana: Então, é engraçadíssimo, porque a grande maioria da minha bibliografia é voltada para a infância e juventude. Antigamente, o governo federal fomentava a escrita dramatúrgica com o Prêmio Funarte de Dramaturgia, que teve sua última edição em 2017, e para participar dos textos principalmente ser inéditos e eu não tinha nenhum texto inédito na época.
A minha primeira graduação foi em história e algo que me afetou muito era como a gente foi educada para se relacionar com outras culturas. Eu não entendia porque as pessoas odiavam tanto outras culturas enquanto existia uma supervalorização das culturas ligadas à Europa. A partir daí, eu decidi que queria começar algo a partir de uma autocrítica do meu olhar sobre isso. Foi então que surgiu o “Ensaio Sobre a Verdade”, como uma peça de teatro, porque também estávamos numa época em que as pessoas não queriam saber da verdade, queriam apenas acompanhar matérias que combinassem com o que elas acreditavam.
E o “Ensaio Sobre a Verdade” é realmente isso, um pai e um filho donos de uma fazenda que cometeram uma grande atrocidade e ficam ensaiando o que vão dizer para a população sem se preocupar com a atrocidade que eles cometeram.
Ele foi conquistando caminhos e estruturas, se tornou um drama psicológico que envolve também o terror das coisas que as pessoas fizeram.
Gazeta Digital: O que você destacou sobre a produção do longa?
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Wanderson Lana: A importância da diversidade da nossa equipe. A equipe em que a produção foi toda feita por mulheres, desde a direção de produção até outras áreas. A presença de profissionais indígenas no trabalho, consultoria, desde consultoria de dramaturgia, até corpo indígena em cena e na assistência de direção, como atores e figuração.
A gente teve um corpo diverso de pessoas, que ajudaram a construir essa história. E isso para as pessoas do Teatro Faces sempre foi muito importante. Faz a gente refletir sobre o território que a gente vive. Se estamos em um território diverso, é importante que nosso elenco também seja diverso.
Gazeta Digital: Como foi a organização para que fosse possível uma produção em apenas 24 dias?
Wanderson Lana: A produção durou 24 dias, mas a pré-produção foi mais longa, com muita organização. Algumas cenas eram cenas muito complexas, demonstraram muita paciência e a gente especificação de uma maneira para que a história acontecesse em três conjuntos apenas: uma casa, uma fazenda e um espaço religioso. Claro, a gente precisaria de mais tempo, só que no cinema a gente trabalhava com os profissionais por dia, então os valores ficariam mais altos.
Chegamos a ter 118 pessoas no mesmo tempo, em alguns dias de trabalho, mas a mídia diária era de 55 a 60 pessoas trabalhando todos esses 24 dias. É uma situação enorme, muitas pessoas se organizaram tão bem que conseguiram terminar dentro do prazo.
Gazeta Digital: Após anos de experiência na área cinematográfica regional, existem dificuldades para a produção local?
Wanderson Lana: A minha grande dificuldade é querer trabalhar somente com pessoas de Mato Grosso. Existem áreas que ainda é difícil encontrar profissionais disponíveis. A gente ainda tem uma falta na formação de jovens e é preciso ter mais projetos para que adolescentes e jovens se interessem pelo cinema.
Falar em profissões artísticas no colégio é um convite a qualquer tipo de diálogo. Talvez a maior dificuldade seja ter mais projetos que fomentem o surgimento de profissionais para que uma cena cresça e se fortaleça.
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Outra dificuldade não faz sentido para o financiamento continuado das obras. A gente não tem tanta facilidade para manutenção de projetos de cinema, não só em Mato Grosso, mas no país inteiro. Aqui a gente percebe, ainda, que o cinema tanto de Mato Grosso, quanto da região da Amazônia Legal, é olhado de maneira verticalizada.
A gente já tem algumas dificuldades em se validar pelo nosso trabalho e aqui temos que ser duas vezes melhor para que o mercado abrace nossas produções. Isso é muito pesado, o olhar xenofóbico ainda sobre as produções de Mato Grosso e na região da Amazônia Legal ainda é muito forte.
A gente é olhado de maneira exotizada, como se tivéssemos que fazer filmes sempre de acordo com um tema que eles acham que a gente deveria fazer.